Implicações de ser classificado como um valor mobiliário (security)
Nos últimos anos, a linha que separa ativos digitais de securities (valores mobiliários) tem se tornado cada vez mais tênue. A classificação de um token ou cripto‑ativo como security traz consequências jurídicas, fiscais e operacionais que podem mudar completamente a forma como ele é emitido, negociado e regulado. Neste artigo aprofundado, analisaremos os principais impactos dessa classificação no Brasil e no cenário internacional, oferecendo orientações práticas para investidores, desenvolvedores e gestores de projetos.
1. O que é um valor mobiliário (security) e como a lei o define?
Um valor mobiliário (ou security) é, em termos gerais, qualquer direito que represente participação nos lucros, controle ou dívida de uma entidade. Nos Estados Unidos, a definição está consolidada na Howey Test, criada em 1946 pela Suprema Corte. Segundo esse teste, um ativo é considerado security quando:
- Há um investimento de dinheiro;
- O investimento é feito em um empreendimento comum;
- Há expectativa de lucro;
- O lucro provém dos esforços de terceiros.
Embora a Howey Test seja norte‑americana, muitas jurisdições adotam critérios semelhantes. No Brasil, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) ainda está desenvolvendo regulamentações específicas para cripto‑ativos, mas segue princípios internacionais para determinar quando um token se enquadra como security.
2. Por que a classificação importa? Principais implicações
Quando um token é considerado um security, ele deixa de ser um simples bem digital e passa a estar sujeito a um conjunto de obrigações:
2.1. Registro e compliance
Emitentes precisam registrar a oferta junto à autoridade competente (SEC nos EUA, CVM no Brasil, FCA no Reino Unido, etc.) ou se enquadrar em isenções específicas. O processo inclui:
- Elaboração de prospectos detalhados;
- Divulgação de informações financeiras e de risco;
- Auditoria por terceiros.
Sem esse registro, a oferta pode ser considerada ilegal, acarretando multas, bloqueio de negociação e até processos criminais.
2.2. Requisitos de KYC/AML
Plataformas que negociam securities devem implementar procedimentos rigorosos de Know Your Customer (KYC) e combate à lavagem de dinheiro (AML). Isso implica coleta de documentos de identidade, verificação de origem de recursos e monitoramento de transações suspeitas.
2.3. Tributação diferenciada
No Brasil, a tributação de securities pode envolver Imposto de Renda (IR) sobre ganhos de capital, além de possíveis impostos sobre dividendos e juros sobre capital próprio. A Receita Federal exige que os investidores declarem esses rendimentos em campos específicos da declaração anual.
2.4. Direitos dos investidores
Ao ser classificado como security, o token confere ao detentor direitos típicos de acionistas ou credores, como voto em decisões estratégicas, participação nos lucros ou direito de resgate. Essa proteção adicional pode tornar o ativo mais atrativo para investidores institucionais, mas também aumenta a complexidade jurídica.
3. Como identificar se seu token pode ser considerado um security?
Não há resposta única, mas alguns indicadores ajudam a avaliar o risco de classificação:

- Finalidade econômica: Tokens que prometem retorno financeiro direto são mais propensos a serem securities.
- Centralização: Projetos altamente centralizados, onde uma equipe controla a maioria dos tokens e decisões, tendem a ser vistos como securities.
- Utilidade vs. investimento: Tokens de utilidade (utility tokens) que dão acesso a um serviço específico costumam escapar da classificação, desde que não prometam lucro.
- Estrutura de distribuição: Ofertas públicas amplas (ICO, IEO) são mais suscetíveis a regulação que ofertas privadas restritas.
Para projetos que ainda estão em fase de concepção, a consulta a advogados especializados em direito securitário é essencial. A SEC oferece orientações públicas que podem servir de referência.
4. Casos emblemáticos que moldaram o debate
Alguns processos judiciais e decisões regulatórias ajudaram a definir limites:
4.1. SEC v. Ripple Labs Inc.
Em 2020, a SEC acusou a Ripple de vender XRP como security não registrado. O caso ainda está em andamento, mas destaca que mesmo tokens com uso funcional podem ser enquadrados como securities se houver expectativa de lucro.
4.2. Telegram Open Network (TON)
A SEC interrompeu a venda de tokens Gram, argumentando que a oferta era um investimento em um negócio comum. O Telegram acabou desistindo do projeto e devolveu fundos aos investidores.
4.3. Regulação na Europa
A European Commission está desenvolvendo o MiCA (Markets in Crypto‑Assets) que traz regras claras para tokens que se qualificam como securities, incluindo requisitos de capital e transparência.
5. Estratégias para mitigar riscos e permanecer em conformidade
Se você está lançando um token ou investindo em cripto‑ativos, considere as seguintes práticas:
5.1. Realizar uma análise jurídica preliminar
Contrate escritórios especializados para aplicar o Howey Test ou equivalentes locais. Um parecer jurídico pode salvar seu projeto de sanções futuras.
5.2. Estruturar tokens como utilidade real
Desenvolva funcionalidades que dependam do uso do token dentro da plataforma (ex.: pagamento de taxas, acesso a serviços). Evite promessas de valorização automática.
5.3. Utilizar isenções regulatórias
Algumas jurisdições oferecem isenções para ofertas privadas a investidores qualificados ou para valores abaixo de certos limites. Avalie se sua captação se enquadra nesses critérios.

5.4. Implementar governança descentralizada
Quanto mais a comunidade puder influenciar decisões (por exemplo, via DAO), menor a chance de o token ser visto como security controlado por uma entidade central.
5.5. Manter transparência contínua
Divulgue relatórios trimestrais, auditorias e atualizações de roadmap. Transparência reduz a percepção de risco pelos reguladores.
6. Impacto para investidores brasileiros
Para quem investe em cripto‑ativos no Brasil, a classificação como security traz mudanças práticas:
- Necessidade de corretoras registradas: Apenas instituições autorizadas pela CVM podem oferecer securities.
- Obrigações de declaração: Ganhos devem ser reportados na ficha “Rendimentos Variáveis” da declaração de Imposto de Renda.
- Possibilidade de proteção jurídica: Investidores podem acionar a justiça em caso de fraude, como ocorre com ações tradicionais.
Para aprofundar a compreensão sobre a regulação de cripto‑ativos na região, leia nosso artigo sobre Regulação de criptomoedas na Europa, que traz um panorama comparativo entre as principais normas internacionais.
7. Tokenização de ativos tradicionais e a fronteira das securities
A tokenização de imóveis, títulos de dívida ou ações reais cria um novo conjunto de securities digitais. Esses tokens são, por definição, valores mobiliários, pois representam direitos sobre ativos reais. O Guia Completo de Tokenização de Ativos explica como essas emissões são estruturadas e quais são as exigências regulatórias no Brasil.
8. Conclusão: Navegando entre inovação e compliance
Ser classificado como um valor mobiliário não significa que um token seja “proibido”. Pelo contrário, a classificação pode abrir portas para investidores institucionais, aumentar a credibilidade e garantir maior proteção ao detentor. Contudo, requer um planejamento cuidadoso, assessoria jurídica especializada e um compromisso permanente com a transparência.
Se você está considerando lançar um projeto de token ou deseja investir em cripto‑ativos, avalie atentamente os critérios de segurança, busque orientação profissional e mantenha-se atualizado sobre as mudanças regulatórias. O futuro das finanças digitais depende da capacidade de equilibrar inovação tecnológica com o respeito às normas que protegem investidores e o mercado como um todo.
Para quem está começando, recomendamos o Guia Definitivo de Criptomoedas para Iniciantes, que oferece uma base sólida antes de mergulhar em questões mais avançadas como a classificação de securities.