Como um ator malicioso pode assumir o controle de um protocolo DeFi através da compra de tokens de governança
Nos últimos anos, a governança descentralizada tornou‑se um dos pilares das finanças descentralizadas (DeFi). Ao permitir que os detentores de tokens votem sobre mudanças de parâmetros, upgrades de contrato e alocações de fundos, a governança promete transparência e participação comunitária. Contudo, essa mesma estrutura abre brechas para agentes maliciosos que, ao acumular uma quantidade significativa de tokens de governança, podem manipular o protocolo em benefício próprio.
1. Entendendo a governança baseada em tokens
Em um modelo típico de governança token‑based, cada token representa um voto. As decisões são executadas mediante propostas que precisam alcançar um quorum mínimo e, muitas vezes, uma maioria qualificada. Essa mecânica está detalhada na documentação oficial da Ethereum sobre governança, que descreve como contratos inteligentes podem automatizar o processo de votação.
Os principais componentes são:
- Proposers (Proponentes): endereços que podem submeter propostas, geralmente após bloquear uma quantidade mínima de tokens.
- Voters (Eleitores): detentores de tokens que podem votar a favor ou contra uma proposta.
- Quorum e maioria: requisitos que garantem que a decisão reflita a vontade da maioria da comunidade.
2. Por que a compra de tokens de governança é um vetor de ataque viável?
Ao contrário de protocolos que dependem de chaves privadas de administradores centralizados, a governança token‑based distribui o poder de decisão entre os detentores. Se um agente consegue comprar ou alugar uma parcela suficiente desses tokens, ele pode:
- Submeter propostas maliciosas (por exemplo, mudar a taxa de juros de um pool de empréstimos).
- Votar a favor dessas propostas, garantindo sua aprovação.
- Destruir ou drenar fundos do contrato inteligente.
Esse cenário é conhecido como governance attack ou governance takeover. A estratégia costuma envolver duas fases: acumulação de tokens e execução da proposta.
3. Estratégias de acumulação de tokens
Existem diversas formas de adquirir tokens de governança:
- Compra direta no mercado: plataformas como CoinGecko listam pares de negociação que permitem a compra em grande volume.
- Liquidity mining e staking: alguns protocolos distribuem tokens de governança como recompensas. Um atacante pode participar desses programas apenas para acumular rapidamente.
- Flash loans: empréstimos instantâneos sem colateral podem ser usados para comprar tokens, votar e depois devolver o empréstimo em uma única transação.
O uso de flash loans para governança é particularmente perigoso, pois elimina a necessidade de capital próprio. Um exemplo famoso foi o ataque ao protocolo Compound em 2020, onde um invasor utilizou um empréstimo flash para adquirir tokens COMP e aprovar uma mudança de parâmetros que lhe deu acesso a fundos adicionais.

4. Execução da proposta maliciosa
Depois de controlar a maioria dos votos, o atacante submete uma proposta que pode variar de simples ajustes de parâmetros a mudanças drásticas, como:
- Redirecionamento de taxas de empréstimo para um endereço controlado.
- Alteração de funções de withdraw para permitir saques ilimitados.
- Desativação de mecanismos de segurança, como pausability ou limites de crédito.
Uma vez aprovada, a proposta é executada automaticamente pelo contrato de governança, e o atacante pode drenar fundos em minutos.
5. Estudos de caso relevantes
A seguir, analisamos dois incidentes que ilustram bem a dinâmica descrita:
5.1. Ataque ao YAM Finance (2020)
O token YAM possuía governança delegável: os detentores podiam delegar seu voto a terceiros. Um atacante acumulou YAM, delegou a si mesmo a maioria dos votos e, em seguida, propôs a atualização do contrato que permitia a ele retirar todo o fundo de liquidez. O ataque resultou em perdas de aproximadamente US$ 30 milhões.
5.2. Vulnerabilidade em protocolos de Vampire Attack
Embora o objetivo principal de um Vampire Attack em DeFi seja migrar liquidez de um protocolo concorrente, a estratégia de compra massiva de tokens de governança pode ser combinada a esse ataque para garantir controle total sobre o novo pool. Essa tática foi observada em alguns projetos emergentes que, ao atrair usuários de um protocolo rival, também compraram a maioria dos tokens de governança do próprio protocolo alvo para impedir mudanças de parâmetros desfavoráveis.
6. Medidas de prevenção e melhores práticas
Para mitigar o risco de tomada de controle por atores maliciosos, as equipes de desenvolvimento devem adotar estratégias defensivas, muitas das quais são detalhadas no artigo Como os protocolos DeFi se protegem: Estratégias avançadas de segurança e resiliência:

- Distribuição de tokens: evitar a concentração de tokens em poucos endereços, usando vesting e airdrops amplos.
- Quorums elevados e limites de votação: exigir que propostas cruciais atinjam quóruns superiores a 50% do supply total.
- Delay de execução: implementar um período de carência entre a aprovação e a execução da proposta, permitindo que a comunidade reaja.
- Multisig e timelocks: exigir múltiplas assinaturas de contas confiáveis para alterações de parâmetros críticos.
- Monitoramento de transações: usar ferramentas de análise on‑chain para detectar compras súbitas de grandes volumes de tokens de governança.
Além disso, alguns protocolos adotam governance guards, contratos que bloqueiam mudanças de parâmetros que poderiam comprometer a segurança, a menos que sejam aprovadas por um conjunto de validadores independentes.
7. O papel da comunidade e da auditoria
Mesmo com mecanismos técnicos robustos, a vigilância da comunidade continua essencial. Usuários ativos podem:
- Participar de discussões em fóruns e grupos de Telegram/Discord para identificar movimentos suspeitos.
- Realizar auditorias de código abertas, focando em funções de governança.
- Utilizar serviços externos de análise de risco, como CertiK ou OpenZeppelin, que frequentemente publicam relatórios sobre vulnerabilidades de governança.
Quando a comunidade detecta um risco iminente, pode acionar mecanismos de emergency pause (pausa de emergência) para impedir a execução da proposta até que a situação seja avaliada.
8. Conclusão
A governança descentralizada traz inúmeros benefícios, mas também introduz um vetor de ataque poderoso: a compra massiva de tokens de governança. Atacantes sofisticados podem combinar estratégias de aquisição de tokens com flash loans, submeter propostas maliciosas e drenar fundos em questão de minutos.
Para proteger os protocolos, desenvolvedores devem implementar mecanismos de segurança avançados — como quoruns elevados, delays de execução e multisig —, enquanto a comunidade deve permanecer vigilante, auditando código e monitorando a concentração de tokens.
Somente através de uma abordagem conjunta de design robusto, monitoramento constante e educação da comunidade será possível mitigar o risco de takeover e garantir que o ecossistema DeFi continue a evoluir de forma segura e verdadeiramente descentralizada.