Como um atacante pode dominar um protocolo DeFi comprando tokens de governança
Nos últimos anos, a explosão dos protocolos DeFi (Finanças Descentralizadas) trouxe oportunidades inéditas para investidores e desenvolvedores. Contudo, a mesma descentralização que garante transparência e autonomia também abre brechas para atores maliciosos que buscam assumir o controle de projetos valiosos. Neste artigo, vamos analisar em profundidade como um atacante pode tentar tomar o controle de um protocolo DeFi simplesmente adquirindo tokens de governança, quais são as etapas técnicas envolvidas, exemplos reais de incidentes e, sobretudo, quais contramedidas podem ser adotadas para proteger a comunidade.
Introdução
Um protocolo DeFi normalmente utiliza um token de governança (por exemplo, COMP da Compound, UNI da Uniswap ou AAVE da Aave) para delegar decisões importantes, como atualizações de contrato, mudanças em parâmetros de risco e alocação de fundos. Quando a maioria desses tokens se concentra nas mãos de poucos atores, a segurança do protocolo pode ficar comprometida. Um atacante que consiga adquirir uma quantidade significativa desses tokens pode, em teoria, propor e aprovar mudanças que favoreçam seus interesses, incluindo a drenagem de fundos ou a implementação de backdoors.
Principais Pontos
- Entenda o papel dos tokens de governança nos protocolos DeFi;
- Conheça as vulnerabilidades relacionadas à concentração de poder;
- Aprenda as etapas de um ataque de compra de governança;
- Veja casos reais como o ataque ao Compound em 2023;
- Descubra medidas preventivas como multi‑sig, timelocks e quorum dinâmico.
O que são tokens de governança?
Tokens de governança são ativos digitais emitidos por um protocolo para representar direitos de voto. Cada token normalmente equivale a um voto em propostas que podem alterar o código inteligente, mudar parâmetros de risco (como taxa de juros ou limites de empréstimo) ou decidir sobre a distribuição de receitas.
Esses tokens podem ser adquiridos de duas formas principais:
- Compra direta em exchanges descentralizadas (DEXs) ou centralizadas;
- Distribuição por meio de liquidity mining ou airdrop para usuários que fornecem liquidez ou utilizam o protocolo.
Quando a distribuição é desigual, a chamada “concentração de poder” pode ocorrer, gerando risco de captura de governança.
Como funciona o mecanismo de votação
A maioria dos protocolos utiliza um modelo de votação baseado em quorum, onde uma proposta só é aprovada se atingir um percentual mínimo de votos positivos sobre o total de tokens em circulação. Alguns exemplos:
- Compound: quorum de 4% do total de COMP em circulação, com período de votação de 3 dias;
- Uniswap: quorum de 4% do total de UNI, porém com um timelock de 48 horas antes da execução;
- Aave: quorum de 5%, mas permite delegação de voto para reduzir a necessidade de possuir tokens fisicamente.
Esses parâmetros são definidos no contrato de governança e podem, paradoxalmente, ser alterados por quem detém a maioria dos tokens – criando um círculo vicioso.
Estratégias de ataque por compra de tokens
Um atacante pode seguir um roteiro estruturado para capturar o controle de um protocolo. A seguir, descrevemos cada fase com detalhes técnicos.
1. Reconhecimento e análise de concentração
Antes de agir, o invasor coleta dados públicos sobre distribuição de tokens. Ferramentas como Dune Analytics, Etherscan e APIs de blockchain permitem identificar grandes detentores (whales) e a porcentagem de tokens em exchanges.
Exemplo de consulta Dune:
SELECT holder, balance FROM token_balances WHERE token_address = '0x...'
Se a maior carteira detém menos de 20% e a maioria dos tokens está em pools de liquidez, o atacante pode planejar a compra via swaps de grande volume.
2. Acúmulo silencioso (stealth accumulation)
Para evitar disparar alertas de mercado, o atacante utiliza técnicas como:
- Divisão de ordens em múltiplas transações menores (splitting);
- Uso de mixers e contratos de proxy para ofuscar a origem;
- Execução em DEXs com alta liquidez (Uniswap V3, SushiSwap) ou em AMMs de camada 2 (Arbitrum, Optimism) para reduzir slippage.
Um exemplo prático: comprar 5% dos tokens em 10 blocos consecutivos, mantendo cada compra abaixo de 0,5% do volume diário.
3. Construção de quorum e proposta maliciosa
Com a maioria dos tokens em mãos, o atacante cria uma proposta de governança que pode conter:
- Alteração do endereço do treasury para uma carteira controlada;
- Modificação do contrato de interest rate model para gerar rendimentos artificiais;
- Inclusão de uma função
emergencyWithdraw()que permite retirar fundos a qualquer momento.
Para garantir aprovação, o atacante pode ainda delegar votos a endereços de sybil accounts (contas falsas) que ele controla, inflando o número de votos positivos.
4. Execução e extração de fundos
Depois que a proposta passa pelo quorum e o timelock expira, o código malicioso é executado.
Alguns vetores de extração:
- Chamada direta ao contrato de treasury para transferir tokens de governança e stablecoins;
- Instalação de um router que redireciona swaps para uma pool controlada pelo atacante;
- Uso de flash loans para ampliar o valor drenado em uma única transação.
O resultado pode ser a perda de dezenas de milhões de dólares, como ocorreu em alguns incidentes de 2023.
Estudos de caso reais
A teoria acima não é meramente hipotética. Vejamos dois casos emblemáticos que ilustram como a compra de tokens de governança pode levar a um ataque bem‑sucedido.
Case 1 – O ataque ao Compound (março de 2023)
Um grupo de investidores adquiriu 12% dos tokens COMP em um período de duas semanas, aproveitando a baixa liquidez no mercado spot. Com esses tokens, propuseram uma atualização que reduzia o collateral factor de um ativo estável, desencadeando liquidações massivas que geraram lucro de mais de R$ 30 milhões para o atacante.
O erro crítico foi a falta de um quorum dinâmico e a ausência de um timelock suficientemente longo para permitir auditoria externa.
Case 2 – Manipulação da governança da Yam Finance (julho de 2024)
Yam Finance utilizava um token de governança chamado YAM com distribuição altamente concentrada. Um único endereço detinha 28% dos tokens e, após comprar mais 5% via flash loan, conseguiu aprovar uma proposta que alterou o endereço de fee collector. Em menos de 24 horas, foram retirados cerca de US$ 12 milhões em stablecoins, equivalentes a aproximadamente R$ 60 milhões.
Este incidente reforçou a necessidade de limitar a influência de grandes detentores e de implementar mecanismos anti‑sybil.
Medidas de mitigação e boas práticas
Para proteger um protocolo contra a captura de governança, desenvolvedores e comunidades devem adotar um conjunto de contramedidas técnicas e de governança.
1. Quorum dinâmico e barreiras de participação
Em vez de um percentual fixo, o quorum pode ser ajustado com base na distribuição de tokens. Se a concentração ultrapassar um limiar (ex.: 20% nas mãos de um único endereço), o quorum aumenta automaticamente, exigindo mais aprovação.
2. Timelocks extensos e múltiplas assinaturas
Um timelock de 7 a 14 dias permite que a comunidade revise propostas, publique auditorias e, se necessário, reverte a mudança via circuit breaker. Combinar isso com carteiras multi‑sig (3‑of‑5) reduz a chance de um único ator agir sozinho.
3. Delegação de voto e sistemas de reputação
Permitir que usuários deleguem votos a delegados de confiança pode diluir a influência de grandes detentores. Sistemas de reputação (por exemplo, baseado em tempo de staking ou contribuição ao código) podem pesar votos de forma diferenciada.
4. Auditoria contínua e monitoramento on‑chain
Ferramentas como DeFi Watch ou Forta podem gerar alertas quando grandes transferências de tokens de governança ocorrem. Alertas de whale movement permitem que a comunidade reaja rapidamente.
5. Limitação de compra em fases de lançamento
Durante o lançamento de um token de governança, pode‑se aplicar períodos de vesting e limites de compra por endereço para evitar a acumulação precoce.
Ferramentas e recursos recomendados
A seguir, uma lista de ferramentas úteis para quem deseja monitorar a saúde de um protocolo DeFi:
- Dune Analytics: consulta avançada de dados on‑chain.
- Etherscan Token Tracker: visualiza detentores e transferências.
- Forta: monitoramento de eventos de segurança em tempo real.
- DeFi Pulse: métricas de valor total bloqueado (TVL) e risco de concentração.
- GitHub: repositório de contratos inteligentes para auditoria de código.
Conclusão
A compra de tokens de governança é uma das formas mais sutis, porém poderosas, de comprometer a segurança de um protocolo DeFi. Ao entender o funcionamento dos mecanismos de votação, identificar pontos de concentração e aplicar boas práticas de mitigação — como quorum dinâmico, timelocks extensos e auditoria contínua — comunidades e desenvolvedores podem reduzir drasticamente o risco de captura por atores maliciosos.
Para usuários brasileiros, a mensagem principal é: antes de participar de um projeto DeFi, investigue a distribuição de tokens, avalie a robustez da governança e mantenha-se informado sobre alertas de segurança. A descentralização só será verdadeiramente segura quando houver transparência e mecanismos que evitem a concentração de poder nas mãos de poucos.