Como funcionam as stablecoins e por que são controversas

Como funcionam as stablecoins e por que são controversas

As stablecoins são um dos temas mais debatidos no universo cripto, sobretudo no Brasil, onde investidores iniciantes e intermediários buscam alternativas menos voláteis para proteger seu capital. Neste artigo, explicaremos detalhadamente os mecanismos técnicos que dão sustentação a essas moedas digitais, analisaremos os diferentes modelos existentes e discutiremos as principais controvérsias que cercam sua adoção, regulação e impacto no sistema financeiro tradicional.

Principais Pontos

  • Definição e objetivo das stablecoins.
  • Tipos principais: fiat‑backed, cripto‑backed e algorítmicas.
  • Mecanismos de colateral e reservas.
  • Riscos de centralização, liquidez e transparência.
  • Desafios regulatórios no Brasil e no mundo.
  • Como avaliar a segurança de uma stablecoin antes de investir.

Introdução

Desde o surgimento do Bitcoin, a volatilidade tem sido o principal obstáculo para a adoção em massa das criptomoedas. Enquanto o Bitcoin pode oscilar mais de 10% em um único dia, as stablecoins prometem estabilidade ao manter seu valor atrelado a um ativo de referência, geralmente uma moeda fiduciária como o dólar americano (USD) ou o real (BRL). Essa característica as torna atrativas para pagamentos, remessas internacionais, finanças descentralizadas (DeFi) e como reserva de valor em carteiras digitais.

Como as stablecoins funcionam

O conceito central das stablecoins é simples: manter um peg (paridade) constante com o ativo de referência. Contudo, a forma de garantir esse peg varia significativamente entre os diferentes modelos. Abaixo, detalhamos os três grandes grupos de stablecoins.

1. Stablecoins fiat‑backed (colateralizadas em moeda fiduciária)

Essas são as mais comuns e funcionam de maneira semelhante a um depósito bancário tradicional. Cada token emitido está respaldado por reservas em dólares, reais ou outra moeda fiat mantidas em contas bancárias auditadas. Exemplos notáveis incluem USDT (Tether), USDC (Circle) e a BRL Stablecoin (BRZ) lançada por instituições brasileiras.

O processo típico envolve:

  1. Um usuário compra a stablecoin pagando a moeda fiduciária correspondente.
  2. A empresa emissora deposita o valor em uma conta bancária ou em custódia de terceiros.
  3. Em troca, o usuário recebe tokens equivalentes ao valor depositado.
  4. Auditores independentes verificam periodicamente as reservas para garantir a 1:1 correspondence.

O ponto crítico aqui é a transparência. Se as auditorias não forem suficientemente frequentes ou detalhadas, surge o risco de que as reservas não correspondam ao volume circulante, como apontado em controvérsias envolvendo o Tether.

2. Stablecoins cripto‑backed (colateralizadas em outras criptomoedas)

Neste modelo, a stablecoin é garantida por ativos digitais, normalmente Bitcoin (BTC) ou Ethereum (ETH). Como as criptomoedas são voláteis, o sistema requer um nível de sobre‑colateralização — tipicamente 150% a 300% do valor da stablecoin emitida — para absorver possíveis quedas de preço.

Um exemplo clássico é a DAI, criada pela MakerDAO. O usuário deposita ETH como garantia em um contrato inteligente, que emite DAI com peg ao USD. Se o preço da garantia cair abaixo de um limite predefinido, mecanismos automáticos de liquidação (liquidations) são acionados para proteger a estabilidade.

Vantagens desse modelo incluem a descentralização (não há custódia central) e a possibilidade de operar completamente on‑chain. No entanto, a complexidade dos contratos inteligentes e a necessidade de monitoramento constante das garantias aumentam o risco operacional.

3. Stablecoins algorítmicas (sem colateral direto)

As stablecoins algorítmicas não mantêm reservas físicas; em vez disso, utilizam algoritmos de oferta e demanda para ajustar o suprimento e manter o peg. Quando o preço sobe acima da meta, novas moedas são emitidas; quando cai, moedas são destruídas (burned).

Um exemplo histórico foi a TerraUSD (UST), que utilizou um mecanismo de queima e mintagem ligado ao token LUNA. Embora inicialmente tenha funcionado, o colapso da UST em 2022 revelou vulnerabilidades significativas, gerando uma forte controvérsia sobre a viabilidade desse modelo.

Esses projetos são criticados por dependerem de confiança na lógica algorítmica e em oráculos de preço, que podem ser manipulados ou falhar.

Tipos de stablecoins e suas características técnicas

A seguir, apresentamos uma tabela comparativa que ajuda a entender as diferenças técnicas entre os principais tipos:

Tipo Colateral Sobre‑colateralização Centralização Exemplos
Fiat‑backed Moeda fiduciária (USD, BRL) 1:1 (ou próximo) Alta (custódia bancária) USDT, USDC, BRZ
Cripto‑backed Criptomoedas (BTC, ETH) 150‑300% Média (contratos inteligentes) DAI, sUSD
Algorítmica Nenhum (ou token nativo) Não aplicável Baixa a Média (dependência de oráculos) UST (falhou), FRAX

Riscos e controvérsias associados às stablecoins

Apesar da promessa de estabilidade, as stablecoins enfrentam diversas críticas e desafios. Abaixo, listamos os principais pontos de controvérsia:

1. Falta de transparência nas reservas

Alguns emissores não divulgam auditorias em tempo real, gerando dúvidas sobre a existência de reservas suficientes. O caso do Tether (USDT) ilustra bem essa preocupação: apesar de alegar reservas completas, a empresa ainda enfrenta processos judiciais nos EUA sobre supostas práticas enganosas.

2. Risco de centralização

Stablecoins fiat‑backed dependem de bancos e custodians, o que pode criar pontos únicos de falha. Se a instituição que detém as reservas for alvo de sanções ou falir, a peg pode ser quebrada, como ocorreu com a Payward em 2023, quando a stablecoin USDP perdeu temporariamente seu peg após restrições regulatórias.

3. Vulnerabilidades de contratos inteligentes

No modelo cripto‑backed, bugs ou falhas nos contratos podem ser explorados por hackers. Em 2024, a DAO MakerDAO sofreu um ataque que explorou uma função de liquidação mal configurada, resultando em perdas de cerca de US$ 12 milhões em DAI.

4. Manipulação de oráculos

Stablecoins algorítmicas dependem de oráculos de preço para ajustar a oferta. Se um oráculo for comprometido, o algoritmo pode reagir de forma equivocada, provocando descolamento do peg. O ataque ao oráculo da FRAX em setembro de 2024 gerou volatilidade inesperada, alimentando a narrativa de que esses projetos ainda não são confiáveis.

5. Impacto no sistema financeiro tradicional

Autoridades regulatórias, como o Banco Central do Brasil (BCB), temem que stablecoins possam representar risco sistêmico, especialmente se grandes volumes migrarem para essas moedas, reduzindo a base de depósitos bancários. O BCB lançou, em 2023, o régimen de supervisão que exige relatórios mensais de reservas e auditorias independentes.

Desafios regulatórios no Brasil

O Brasil tem avançado na criação de um marco regulatório para criptoativos, mas a definição específica para stablecoins ainda está em debate. Alguns pontos críticos incluem:

  • Definição legal: Se a stablecoin será tratada como moeda, ativo financeiro ou instrumento de pagamento.
  • Requisitos de capital: Exigência de reservas mínimas e auditorias trimestrais.
  • Proteção ao consumidor: Garantias de que o usuário pode resgatar a stablecoin por sua moeda fiat a qualquer momento.
  • Integração com o Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB): Possibilidade de usar stablecoins como meio de pagamento em estabelecimentos comerciais.

Em dezembro de 2024, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) publicou um parecer preliminar que recomenda a classificação das stablecoins fiat‑backed como “instrumentos de pagamento” sujeitos à supervisão do BCB, enquanto as cripto‑backed seriam tratadas como “valores mobiliários”. Essa diferenciação tem gerado debates intensos entre exchanges, fintechs e reguladores.

Como avaliar a segurança de uma stablecoin antes de investir

Para usuários brasileiros que desejam usar stablecoins, é fundamental adotar uma abordagem criteriosa. Aqui estão os principais fatores a considerar:

  1. Auditoria independente: Verifique se a stablecoin publica relatórios de auditoria realizados por firmas reconhecidas (ex.: PwC, Deloitte).
  2. Transparência das reservas: Prefira projetos que disponibilizam dashboards em tempo real mostrando o saldo das reservas.
  3. Governança descentralizada: Stablecoins cripto‑backed com DAO de governança tendem a ter maior resistência a censura.
  4. Histórico de peg: Analise a estabilidade do preço ao longo de 12‑24 meses; desvios frequentes indicam fragilidade.
  5. Conformidade regulatória: Verifique se o emissor está registrado junto ao BCB ou à CVM, o que pode oferecer maior segurança jurídica.

Ao seguir esses critérios, o investidor reduz o risco de surpresas desagradáveis, como perda de valor ou bloqueio de ativos.

Aplicações práticas das stablecoins no Brasil

As stablecoins já estão sendo utilizadas em diversos casos de uso no país:

  • Remessas internacionais: Usuários enviam DAI ou USDC para parentes no exterior, reduzindo custos de transferência em até 90% comparado a bancos tradicionais.
  • Pagamentos em e‑commerce: Algumas lojas online aceitam USDC como pagamento, permitindo liquidação instantânea.
  • Finanças descentralizadas (DeFi): Plataformas como Aave e Compound oferecem empréstimos colaterizados em stablecoins, facilitando acesso a crédito sem a necessidade de bancos.
  • Hedging contra inflação: Investidores que temem a desvalorização do real podem converter parte de seus ativos em BRZ ou USDC como proteção.

Conclusão

As stablecoins representam uma ponte crucial entre o mundo cripto e o sistema financeiro tradicional, oferecendo estabilidade de preço e acessibilidade global. Contudo, sua eficácia depende de transparência nas reservas, robustez dos contratos inteligentes e um ambiente regulatório claro. No Brasil, a evolução das normas do Banco Central e da CVM será determinante para que essas moedas ganhem confiança institucional e possam ser adotadas em larga escala.

Para investidores iniciantes e intermediários, o caminho mais seguro atualmente é focar em stablecoins fiat‑backed com auditorias independentes, como USDC, ou em projetos de cripto‑backed consolidados, como DAI, sempre acompanhando as novidades regulatórias locais.

O futuro das stablecoins ainda está em construção, mas sua capacidade de transformar pagamentos, remessas e serviços financeiros é inegável. Ao entender seus mecanismos e riscos, você estará melhor preparado para aproveitar as oportunidades que surgirão nos próximos anos.