El Salvador: Lei do Bitcoin e Lições para o Brasil

El Salvador: Lei do Bitcoin e Lições para o Brasil

Em 2021, El Salvador tornou-se o primeiro país do mundo a adotar o Bitcoin como moeda de curso legal, um passo que gerou debates intensos entre governos, investidores e entusiastas das criptomoedas. Cinco anos depois, em 2025, ainda há muito a analisar sobre os efeitos reais dessa decisão e o que ela pode ensinar para o Brasil, que vem avançando em sua própria agenda regulatória.

Principais Pontos

  • Contexto histórico da aprovação da Lei do Bitcoin em El Salvador.
  • Estrutura técnica e regulatória da lei, incluindo a carteira oficial Chivo.
  • Impactos econômicos observados até 2025: inclusão financeira, investimento estrangeiro e volatilidade.
  • Comparação com o cenário regulatório brasileiro e lições práticas.
  • Desafios e oportunidades para quem deseja operar com criptomoedas no Brasil.

Histórico da Lei do Bitcoin em El Salvador

Antecedentes e motivação

Antes da aprovação da lei, o presidente Nayib Bukele já havia sinalizado seu interesse por tecnologia blockchain como parte de uma estratégia de modernização econômica. O país, com cerca de 6,5 milhões de habitantes e uma grande parcela da população sem acesso a serviços bancários, buscava alternativas para reduzir custos de remessas internacionais – que representavam mais de 25% do PIB.

A ideia de adotar o Bitcoin ganhou força após a popularização do Bitcoin no mundo e a crescente pressão de investidores estrangeiros que viam em El Salvador um “sandbox” natural para testar novas infraestruturas financeiras.

Processo legislativo

Em junho de 2021, o Asamblea Legislativa aprovou a Lei nº 31, que reconhecia o Bitcoin como moeda de curso legal ao lado do dólar americano. O texto foi aprovado em 62 dos 84 votos, com apoio majoritário dos partidos aliados ao presidente. A lei entrou em vigor em setembro de 2021, após a promulgação presidencial.

Principais pontos da lei:

  • Obrigatoriedade de aceitar Bitcoin em todas as transações públicas, com exceção de multas e tributos que podem ser pagas em dólares.
  • Criação da carteira digital oficial “Chivo Wallet”, mantida pelo governo.
  • Isenção de impostos sobre ganhos de capital para transações realizadas com Bitcoin dentro do território.
  • Estabelecimento de um fundo de estabilização em dólares para mitigar a volatilidade.

Como funciona a Lei: aspectos técnicos e regulatórios

Definição legal de Bitcoin como moeda de curso legal

Ao declarar o Bitcoin como moeda de curso legal, a lei de El Salvador o equipara ao dólar em termos de aceitação obrigatória. No entanto, a legislação deixa claro que a moeda não substitui o dólar como reserva de valor; ao contrário, funciona como um meio de pagamento adicional.

Essa distinção é crucial para entender as obrigações das empresas: enquanto o pagamento de salários pode ser feito em Bitcoin, a contabilidade deve refletir a conversão para dólares ao final de cada período fiscal, seguindo as normas da contabilidade de cripto no Brasil.

Infraestrutura: Chivo Wallet, ATMs e parcerias privadas

A carteira oficial, Chivo Wallet, foi lançada simultaneamente à lei. Ela permite a compra, venda e transferência de Bitcoin sem taxas de serviço, com um limite diário de R$ 5.000 (aproximadamente US$ 1.000) para usuários não verificados. A estratégia visava incentivar a adoção massiva, especialmente entre a população não bancarizada.

Além da carteira, o governo instalou mais de 200 caixas eletrônicos (ATMs) que operam 24 horas e aceitam tanto Bitcoin quanto dólares. Parcerias com empresas como Binance e Bitso garantiram liquidez e suporte técnico.

Implicações fiscais

Um dos pontos mais controversos foi a isenção de impostos sobre ganhos de capital em transações de Bitcoin. A lei entende que, ao ser moeda de curso legal, o Bitcoin não se enquadra como ativo de investimento sujeito à tributação tradicional. No entanto, o governo criou um regime de “imposto de transação” de 0,5% para compras de bens de consumo acima de R$ 10.000, com o objetivo de gerar receita para o fundo de estabilização.

Para os investidores estrangeiros, a lei trouxe clareza: a tributação ocorre apenas no momento da conversão para dólares ou outra moeda fiduciária, simplificando a declaração de impostos.

Impactos econômicos e sociais observados até 2025

Inclusão financeira

Segundo dados do Banco Central de El Salvador, a taxa de inclusão financeira aumentou de 48% em 2020 para 71% em 2024. O principal motor desse crescimento foi a adoção da Chivo Wallet, que registrou mais de 2,3 milhões de contas ativas, representando quase 35% da população total.

Entretanto, a adoção efetiva ainda enfrenta barreiras: baixa alfabetização digital, falta de acesso a dispositivos móveis modernos e desconfiança em relação à volatilidade do Bitcoin. Programas de educação digital patrocinados pelo Ministério de Educação foram lançados em 2022, alcançando 150 mil estudantes nas zonas rurais, mas ainda há um longo caminho a percorrer.

Investimentos estrangeiros e turismo

O anúncio da lei atraiu investimentos diretos de empresas de tecnologia e fintechs, que viram em El Salvador um “laboratório” para testar soluções de pagamentos descentralizados. Em 2023, o país recebeu US$ 250 milhões em capital de risco, principalmente de fundos norte‑americanos.

Além disso, o turismo de cripto‑entusiastas cresceu 18% ao ano, impulsionando a demanda por hotéis e restaurantes que aceitam Bitcoin. Alguns negócios relataram aumento de faturamento de até 12% após adotarem a criptomoeda. Cidades como San Salvador e Santa Ana passaram a organizar “Crypto‑Conferences” anuais, que atraem cerca de 5 mil participantes internacionais.

Riscos e volatilidade

A maior crítica à lei permanece a volatilidade do Bitcoin. Entre 2021 e 2023, o preço da criptomoeda sofreu quedas de até 60%, o que impactou o poder de compra dos salários pagos em Bitcoin. O fundo de estabilização, alimentado por reservas em dólares, cobriu cerca de 70% das perdas, mas ainda gerou debates sobre a sustentabilidade fiscal da política.

Em 2024, El Salvador introduziu um mecanismo de “hedge” automático que converte parte dos recebimentos em dólares sempre que a variação diária excede 5%, reduzindo ainda mais a exposição ao risco. Esse sistema utiliza contratos futuros negociados em bolsas internacionais e tem sido citado como um modelo a ser estudado por outros países.

Desafios de implementação e lições aprendidas

Além da volatilidade, o governo enfrentou desafios operacionais significativos: a necessidade de atualizar a infraestrutura de TI do setor público, garantir a segurança cibernética da Chivo Wallet e lidar com a resistência de setores tradicionais, como bancos e sindicatos. Em 2022, uma falha de segurança expôs temporariamente informações de usuários, levando a uma revisão completa dos protocolos de criptografia.

Outra lição importante foi a importância de comunicação clara com a população. Campanhas de informação que explicavam como usar a carteira, como converter Bitcoin para dólares e quais eram os direitos dos consumidores foram decisivas para aumentar a confiança. Ainda assim, pesquisas de 2024 indicam que 38% da população ainda vê o Bitcoin como “arriscado” ou “inseguro”.

Lições para o Brasil

Regulação comparada

O Brasil ainda não possui uma lei que reconheça criptomoedas como moeda de curso legal, mas tem avançado em normas que tratam de ativos digitais, como a Portaria do Banco Central nº 4/2023 e a Lei nº 14.286/2022, que regula exchanges.

Comparar a experiência salvadorenha permite ao regulador brasileiro identificar:

  • A importância de criar uma infraestrutura de pagamentos robusta antes da adoção massiva.
  • Como a isenção total de impostos pode gerar pressões fiscais, sugerindo a adoção de tributação moderada.
  • A necessidade de mecanismos de estabilização para proteger consumidores contra volatilidade.
  • A relevância de programas de educação financeira focados em cripto‑ativos.

Oportunidades e cuidados para investidores brasileiros

Para quem deseja investir ou operar com Bitcoin no Brasil, algumas recomendações surgem a partir da experiência de El Salvador:

  1. Educação financeira: antes de aceitar pagamentos em Bitcoin, compreenda os riscos de conversão e a necessidade de gestão de liquidez.
  2. Uso de wallets híbridas: combine wallets oficiais de exchanges brasileiras com soluções descentralizadas para maior segurança.
  3. Planejamento tributário: registre todas as transações e esteja atento à tributação de ganhos de capital, mesmo que a legislação brasileira ainda evolua.
  4. Monitoramento regulatório: acompanhe as discussões no Congresso sobre possíveis mudanças na classificação de cripto‑ativos.
  5. Participação em iniciativas públicas: envolva‑se em grupos de consulta pública, como o Comitê de Cripto‑Ativos do Ministério da Fazenda, para influenciar políticas futuras.

Conclusão

Três anos após a implementação da Lei do Bitcoin, El Salvador demonstra que a adoção de criptomoedas como moeda de curso legal pode gerar ganhos significativos em inclusão financeira e atração de investimentos, mas também traz desafios consideráveis relacionados à volatilidade e à sustentabilidade fiscal.

Para o Brasil, a lição mais valiosa reside no equilíbrio: combinar inovação regulatória com mecanismos de proteção ao consumidor e políticas fiscais claras. Enquanto o país avança em sua agenda de cripto‑regulação, observar de perto os resultados salvadorenhos pode orientar decisões que fortaleçam o ecossistema nacional sem comprometer a estabilidade econômica.

Em última análise, a experiência de El Salvador funciona como um laboratório vivo – um caso de estudo que oferece insights práticos para legisladores, empreendedores e investidores que desejam navegar no complexo universo das criptomoedas com responsabilidade e visão de longo prazo.